GIOVANI MIGUEZ – moringa, sutura, estrutura [resenha]
GIOVANI MIGUEZ – moringa, sutura, estrutura [resenha]

GIOVANI MIGUEZ – moringa, sutura, estrutura [resenha]

por Mayk Oliveira,

poeta e colunista da Revista Navalhista

(perfil completo)

O enigma do tripé: ponha poesia na sua moringa

Desde a antiguidade, o ser humano buscou compreender a vida e o cosmos por meio de metáforas, conceitos e interrogações. Tales de Mileto, ao afirmar que a água era o princípio de todas as coisas, projetava na fluidez o mistério da origem. Platão, em sua filosofia, propôs que o mundo sensível era apenas sombra de um mundo ideal, tentando apreender o que estaria além da aparência. Já Heráclito, com sua visão do devir, via no movimento e na contradição a essência da realidade. Essas diferentes tentativas de dar forma ao enigma do existir ainda hoje alcançam a literatura, sobretudo na poesia, quando esta não pretende explicar o mundo, mas sim fazê-lo respirar por meio da palavra, como sugere Giovani Miguez em sua plaquete Moringa, Sutura, Estrutura e outros ecos do silêncio (Edição do autor,2025).

A plaquete se estrutura em quatro momentos que se complementam: em “Travessias e silêncios”, o eu lírico percorre caminhos invisíveis e descobre metáforas para a resistência; em “Corpos e resistência”, a poesia ganha voz coletiva, denunciando ausências, violências e apagamentos sociais; já em “Cotidianos e clarões”, o foco recai sobre pequenas cenas diárias, revelando nelas lampejos de sentido e reflexão; por fim, em “Ecos do silêncio”, a crítica se volta para o mundo digital e suas anestesias, contrapondo a virtualidade ao desejo de presença, espera e corporeidade.

A obra apresenta, desde o prólogo, um olhar consciente da brevidade essencial da escrita. Sem a pretensão da totalidade, porém com muita intenção de guardar, remendar e sustentar o eu lírico. A metáfora da moringa, da sutura e da estrutura organiza um tripé poético-existencial que perpassa os textos: a moringa guarda a memória líquida, a sutura fecha feridas que insistem em continuar sangrando, e a estrutura ampara corpos cansados em sua travessia. Essa tríade, ao mesmo tempo simples e poderosa, revela um projeto estético voltado para o cuidado. Miguez nos diz dessa forma que o poema não é mero exercício formal, mas gesto de resistência, um ato de presença no mundo.

Nos poemas que compõem a plaquete, há um constante diálogo entre o íntimo e o coletivo. O “alterego”, por exemplo, revela um eu lírico que escreve como sombra, máscara e disfarce, problematizando a identidade do poeta e sua função social. A escrita surge como corpo outro, feito de restos e de ossos mastigados, evidenciando a tensão entre o que se é e o que se pode dizer. O lirismo passa longe de ser escapista; ele tromba com o visceral, expõe fragilidades, abrindo espaços de invenção dessa maneira:  mordo o verso/ até sentir o gosto do osso/ e cuspir metáforas/que o autor não teria coragem/de mastigar.

No poema “trilha invisível”, Miguez constrói uma paisagem antagônica cujo silêncio é de ouro, evocando a ideia de que a vida é um caminho improvisado, feito de absurdo e surpresas: um cão me olha/ como quem reconhece/ um irmão de estrada/ não ladra/ me acompanha/ até o portão onde o mundo/ retoma seu barulho.

 Já em “o peso do vento”, o elemento natural não aparece como frescor, mas como força que desestrutura, arrancando pedaços da identidade. Miguez diz: “o peso do vento/ há dias em que o vento/ não refresca/ derruba/ leva pedaços/ do que eu pensava ser eu/ espalha pelo quintal”. Contudo se percebe um fio luz, mesmo mínimo, indicando uma fresta de esperança, a lembrança de que existe sempre um lado de fora possível. Essa oscilação entre dor e possibilidade é uma das marcas centrais da obra.

Giovani Miguez

No eixo dos “corpos e resistência”, a poesia se abre para o social, denunciando violências e invisibilidades. Em “corpo-coletivo”, os corpos pretos caídos no chão não são meras tragédias anônimas do noticiário pois, a poesia é usada para reerguer e dá dignidade ao que foi silenciado como seguintes versos: “eu escrevo/ e cada letra/ é um corpo que se levanta / mesmo que só dentro do poema”. Essa dimensão política se reforça nos versos de “pedras na mão”, cujo o gesto de carregar não significa violência iminente memória do peso da existência: “carrego pedras/ não para atirar/ mas para lembrar/ o peso/ o peso que o mundo tem”. A poesia aqui cumpre função ética, transformando ausência em presença, apagamento em escrita.

Na seção “cotidianos e clarões”, o poeta se debruça sobre pequenas cenas diárias, revelando sua dimensão filosófica. O copo d’água, metade cheio, metade céu, aponta para uma fusão entre o concreto e o transcendente. O coração riscado no muro, desbotado, lembra que a vida se define pelo que resta depois que a cor se vai. O poema “domingo em cinza”, traduz um tempo suspenso com os versos: “o pão na mesa/ o café esfriando/ o jornal dobrado/ sobre as notícias de ontem/ lá fora/ um cachorro late para o vento/ a cidade inteira/ parece concordar com ele”. Essa seção apresenta poemas breves, mas que condensam densidade existencial, mostrando que a poesia pode nascer do ordinário e transformá-lo em revelação.

A última parte, “ecos do silêncio”, talvez seja a mais contundente na crítica contemporânea. O poeta denuncia o aprisionamento nas telas, a substituição da espera pelo imediatismo das notificações, a transformação da experiência em dado e da memória em simulação. O poema torna-se denúncia do mal-estar digital, mas sem cair no moralismo: “meus filhos/ olhos/ inocentes/ já viciados/ no brilho/ o silêncio deles/ é o meu eco/ o barro/ virou pixel”. O eu lírico confessa sua própria culpa, a estrada de conforto que ele mesmo construiu e que agora aprisiona seus filhos. O contraste entre barro e pixel revela a perda de corporeidade no mundo atual. A poesia, então, tenta resgatar a experiência sensorial; o toque da pele, o cheiro da chuva, o calor de um abraço. No epílogo, resta a esperança de que desligar as telas possa devolver o rosto às recompensas da vida.

O conjunto da obra mostra que Giovani Miguez se afirma como um poeta do entremeio. Que seria o lugar entre filosofia e cotidiano, entre denúncia social e lirismo, entre crítica cultural e o resgate do cuidado. Sua escrita é consciente de sua finitude com seus diminutos poemas, beirando quase o aforístico. E é justamente nessa economia de palavras que reside sua potência. A poesia que guarda na moringa a memória, para suturar as feridas históricas faz as mais resistentes estruturas para jornada de cada um.

Em diálogo com Tales, Platão e Heráclito, Miguez não busca explicar o princípio das coisas, mas acolher seus fragmentos. A água de Tales reaparece na moringa e no copo d’água; o mundo sensível e suas sombras, tão caros a Platão, se revelam nos muros desbotados e nas telas luminosas; e o devir de Heráclito ressoa no vento que derruba e no fio de sol que insiste em dissipar a névoa. É como se a poesia atualizasse esses antigos esforços filosóficos, não para oferecer respostas definitivas, mas para lembrar que pensar e sentir são formas complementares de existir. Moringa, sutura, estrutura e outros ecos do silêncio é, portanto, um livro que atravessa a tradição e a contemporaneidade, misturando reflexão existencial, crítica social e lirismo cotidiano. A cada página, somos convidados a ouvir o a perceber que a poesia ainda pode ser espaço de respiro em um mundo saturado de ruídos.


Giovani Miguez

Giovani Miguez é poeta, escritor e servidor público. Especialista em Sociologia e Psicanálise, mestre e doutor em Ciência da Informação, com formação em Biblioterapia e mediação de leitura. Nascido em Volta Redonda (RJ), hoje reside no Rio de Janeiro. É autor de  18  livros, entre eles os recentes Um elogio à preguiça, Amor fati e Notações paridas (Uiclap, 2024). Na sua poesia, Miguez explora a expressão e reflexão existencial. Ora lírico, ora político, ora científico, mas sempre est(ético), o poeta segue sendo profundo em suas generalidades.

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