REVISTA NAVALHISTA – O seu livro Versos tecidos com fios d’água é uma obra que tem forte caráter performativo, como se os poemas fossem ritos, boris, banhos e oferendas. Podemos dizer que sua escrita é voltada para diluição de fronteiras entre poesia, artes visuais, espiritualidade e práticas do cotidiano propondo diálogos que emergem dessas práticas. Como foi construir essa jornada poética?
CASSIANO FIGUEIREDO – Durante a feitura de Versos eu estive muito atento ao meu redor. Em 2023, eu trabalhava em Niterói, município do Rio Janeiro, e residia no Itanhangá, um bairro da cidade do Rio, onde ainda resido. Deslocar-me diariamente de minha casa até determinada parte da cidade para fazer a travessia da ponte Rio-Niterói era o momento de refletir, me intrigar e captar o que eu podia aproveitar na poesia. Quando eu tive a oportunidade de organizar o que eu realmente queria, ficou mais fácil de filtrar.
Acredito que a poesia é intrinsicamente performática. Posso dizer que grande parte das poesias de Versos surgiram da minha observação e, pra mim, era difícil se distanciar do que eu realmente via e sentia. Eu não conseguia transformar em uma outra coisa, por exemplo. Eu queria seguir e respeitar o ritmo, a sequência, o cheiro, a textura das coisas. Falando nisso, está vívido em mim quando escrevi “ajeum dos orixás”. Estávamos começando a voltar ao ritmo normal no terreiro, após passarmos por uma fase de luto e pandemia. Precisávamos de uma força, uma luz, um norte para retornarmos. Lembro da iyá, minha mãe de santo, juntar todos que estavam no terreiro no salão para rezarmos. Lá tinha o ajeum, a comida, de todos os orixás. Ficamos ali rezando, unidos pelas vozes e pelo cheiro maravilhoso das comidas. Tomamos um axé, uma benção.
O desejo de querer construir algo simbólico me guiou do início ao fim. Nunca imaginei que poderia publicar um livro um dia, mas a partir do momento que entendi que era possível e que eu poderia tentar ir além do que eu havia escrito há três anos atrás, especificamente em 2019, eu queria aproveitar tudo o que tinha como referência. Devo confessar que na minha escrita não existe fronteiras e foi na diluição delas que pude arrumar uma oferenda bonita e cheirosa para ser entregue às águas.
R. N. – O livro é dividido em cinco movimentos, quase como estações ou passagens de um ritual. “Nascente”, “Gozo das águas”, “Mergulhos resfolegantes”, “Mergulhos ancestrais” e “Fluxo das águas”. Cada movimento tem uma força simbólica muito clara. Como surgiu essa estrutura em movimentos? Eles foram pensados desde o início ou emergiram durante o processo de escrita?
C. F. – Veio-me a ideia de movimentos quando me percebi deslocando muitos olhares e o eu-lírico acatando a dor do outro. Pude compreender com os meus amigos, quando nos juntamos para realizar uma leitura coletiva na minha casa, que as poesias dialogavam entre si, mesmo que ao longo do processo elas tinham sido escritas de forma isolada e num espaço de tempo considerável.
Além disso, o livro de Dona Conceição “Poemas da recordação e outros movimentos” me despertou o interesse pela palavra “movimento”. Fiquei me indagando se a voz poética de Versos trazia essa proposta. Percebi que havia deslocamentos, fluxos, ondulações e vibrações distintas que se complementavam. A partir daí, pude refletir sobre um título para cada movimento. Isso aconteceu com todos os poemas já escritos, assim eu tinha uma dimensão do que poderia ser ofertado.
R. N. – O poema “Arco-íris” fala de espelhos, poças e reflexos. O que você vê hoje quando se olha? De que forma a arte pode contribuir para descolonizar o olhar sobre os corpos dissidentes?
C. F. – Quando o espelho é mencionado logo me lembro da senhora das águas salgadas, minha mãe. Há um itan que diz que ela venceu uma guerra com a ajuda do abebé. Foi ela quem colocou os espelhos em direção aos inimigos. Eles se assustaram com o tanto de guerreiros e desistiram da batalha.
A arte é que nos lança no mundo, nela depositamos nossas preciosidades. Ela nos seduz e nos contamina, ou seja, a reflexão acontece quando nos vemos naquele lugar ou não. E a partir desse sim ou não, cabe a nós aprofundar o entendimento. A arte, para mim, é como o espelho de Yemanjá, ou você enfrenta o que se espelha ou corre por conta da ignorância. Tratando-se de corpos dissidentes, o espelho reflete diversidade, pluralidade e é o que a arte traduz.
Hoje quando me olho não fujo do que vejo. O espelho de minha mãe não mostra o que gostaríamos de ver, mas sim a verdade, a crueza. Essa última machuca e na maioria das vezes não estamos preparados para ela; hoje me sinto, me vejo.
R. N. – “Doença do corpo e da alma” é um dos poemas mais densos e catárticos do livro, pois expõe a violência verbal e simbólica sobre corpos femininos, gordos, pretos e marginalizados. Este poema carrega uma força de denúncia muito intensa. De que maneira se deu o processo de escrita dele? Foi cura ou reabertura de feridas? Em que medida as palavras e os rótulos impostos se tornam doenças? A escrita pode ser um meio de romper com maldições simbólicas?
C. F. – A escrita nos liberta de qualquer tipo de amarra, ela tem o poder de exorcizar memórias obscuras e romper com o que nos fere. Como eu mesmo já disse, me vi em muitos lugares dentro dos movimentos do livro e neste especificamente não me recordo de como se deu o processo, porém eu estava com tanta raiva que descontei toda ela nessa poesia. Eu estava na pele alheia e qualquer tipo de violência inflamava a minha raiva. Assim, acredito que as palavras e os rótulos se tornam doenças quando eles não têm mais aonde perfurar e sabemos que doença não tem cura por isso deve ser cuidada.
R. N. – Em outro poema, o “aconchego de vó”, nos é revelado um tipo de abrigo físico e espiritual. Ficamos curiosos para saber: quais memórias te motivaram neste poema? Que papel as figuras femininas ocupam na sua construção poética e pessoal? Qual a importância da ancestralidade feminina na sua obra?
C. F. – Eu fui criado por muitas mulheres e sempre fui rodeado por elas. Já fui muitas vezes chamado de “bendito fruto” por conta de me sentir confortável em estar no meio delas. Isso se resume à amizade desde a infância e a minha facilidade de conversar e entender o universo feminino.
“Aconchego de vó” nasceu conversando com um amigo de Sergipe sobre a orixá Nanã. Naquele período, eu estava lendo “Cartas para minha avó” da Djamila Ribeiro e uma das palavras que aprendi em seu livro foi “aninhar”. Partindo desse verbo, fui buscando elementos que remetiam a figura da avó e, consequentemente, refletiam na anciã, a yabá mais velha.
Devo muito às mulheres que estiveram presentes na minha criação. Hoje em dia, eu consigo compreender a influência delas na minha vida como ser humano. Por esse motivo, elas estão latentes no meu fazer poético. As minhas reflexões, indagações, inquietações partem do lugar dessas mulheres.
R. N. – Exu, orixá das encruzilhadas, é convocado para dar direção no poema “Encruzilhada d’água”. É um canto que busca encontrar o caminho na incerteza. Conte para gente como você enxerga o papel das encruzilhadas, simbólicas e reais, na sua trajetória poética. Que relação você estabelece entre sua fé e seu processo criativo? O que significa para você “sair da encruzilhada”, em termos existenciais?
C. F. – A própria poesia é uma encruzilhada. Estamos a todo tempo pensando em caminhos e perspectivas para seguir. Todos os Orixás trazem um direcionamento, mas Exú é o senhor dos caminhos. Por isso, não há melhor energia para evocar no momento de incerteza de qual caminho percorrer.
Imagino que a poesia me proporciona múltiplas rotas, cabe ao meu exercício poético me enveredar em uma. Não fico me cobrando na escolha do que seja considerado “melhor”; o melhor pra mim eu vou descobrindo me lançando no novo, diferente e bonito. Tanto as simbólicas, quanto as reais expressam o ir e vir dos meus versos: os lugares que circulo ou desejo circular, os leitores que quero atingir, a ondulação da minha voz poética, porém que ela seja firme de quer chegar em algum lugar.
Minha fé está vinculada ao meu processo criativo. É um espaço que me sinto confiante e seguro para trabalhar. Sinto muito orgulho também. Quando se trata da minha fé, as coisas vêm com mais facilidade, o labor se torna menos solitário.
A multiplicidade da estrada pode nos causar insegurança. O tridente de Exú representa a força, o poder de escolha, o sim e o não, o bem e o mal. É inerente ao ser humano a dúvida e incerteza. Há encruzilhada nas águas também. Até pra você fluir é necessário saber para onde.

R. N. – Você construiu uma cosmogonia própria em “Luamanda”. Um poema mitopoético que mistura narrativa oral e criação cósmica. A lua surge como fruto das lágrimas maternas; a dor transformada em beleza. É uma homenagem inconteste ao feminino negro e às mães d’água. Agora nos conte: Qual o papel da imaginação e da oralidade na sua poesia? O que significa tecer com fios d’água, como Luamanda, no seu ofício de poeta?
C. F. – Um itan diz que Yemanjá tinha tanto leite em seus seios que escorria. O escorrimento do líquido se transformou em mar. Eu quis partir de algo assim. Imaginei uma personagem de “Olhos d’água”, de Dona Conceição, e me deparei com uma notícia que dizia que a Lua era composta por muita água. Isso me deu um estalo.
Flutuar na imaginação é o que me permite juntar a diversidade de cacos pelo caminho e criar poesia. É ter um olhar aguçado às coisas do dia a dia, e quando digo “coisa” me refiro a qualquer coisa mesmo. E a partir disso, ir além, criar um cenário que vai além do real mas que também tem um pouco dele. Confesso que esse exercício não é simples, exige de mim atenção e criatividade. Nem sempre estou aberto para trabalhar nisso. Gosto muito de ouvir as pessoas e usar as suas falas para criar algo novo. Aprendo muito ouvindo o outro porque abrilhanta as minhas ideias.
O ofício de poeta faz eu não me perder de mim mesmo, nessa labuta eu junto os meus cacos assim como Luamanda faz com os estilhaços dos espelhos d’água. Aqui, eu mergulho fundo, pois é onde me sinto seguro, e teço meus movimentos. Como Heleine Fernandes mesma diz na orelha do livro “é bonito ver Cassiano manejar a língua como ferramenta de autoconhecimento, abebé para mira-se e não perder-se de si.”
R. N. – A “água”, “fluxo”, “resfolegar”, “confluência” são usadas como metáforas e formatam a sua maneira de pensar poesia. Explique para nós como essa postura crítica ajudou no processo criativo que fez nascer a coluna “Confluência”. Quais são os parâmetros que você usou para escolher os autores ou artistas que confluem com suas próprias águas?
C. F. – Imagino a água como um elemento expansivo, que ocupa e preenche os lugares apesar das pedras no caminho. Sou um tipo de pessoa que aprendo muito com o outro. A sensação que tenho de confluir é misturar as minhas águas com as do outro. Tudo acontece com muito respeito, diálogo, amor e união. Trata-se de um trabalho em conjunto, em que um depende do outro para matar a sede.
R. N. – A frase de Nego Bispo sobre rios que confluem, mantendo sua essência, marca a concepção da sua coluna literária, na Ruído Manifesto. A coluna por assim dizer é o mergulho das suas águas poéticas nas águas de outros escritores, uma “confluência” de pensamentos e sensibilidades. Como foi o processo de escolha dos autores com quem você banha seu trabalho? Conte para gente sobre um desses encontros que especialmente te marcou como poeta e leitor.
C. F. – A confluência acontece de forma inesperada e não tem um roteiro definido. No entanto, parto sempre da identificação e do interesse em comum. A escolha acontece assim. Portanto, é difícil mencionar um que me marcou porque todos eles me trouxeram ganhos. Cada um me ensinou algo diferente e isso é o que mais me encanta. Na minha caminhada sempre percebo o desafio que é lidar com pessoas de diferentes vivências e perspectivas, porém na confluência a troca é espontânea, produtiva, um gozo infindável.
R. N. – Em sua escrita, é comum a presença de símbolos ritualísticos, fé popular, axé, água, corpo e palavras como benzimento e banho. Tudo isso se conecta com a sensibilidade de quem sabe ler cartas e ouvir para guiar com delicadeza. De qual maneira a cartomancia se entrelaça com sua poesia? Você sente que a leitura das cartas influencia a forma como escreve e enxerga os símbolos nos poemas?
C. F. – A maneira como transmito as mensagens das cartas pode ter uma relação com a minha escrita, uma vez que reflito, analiso as situações ou, às vezes, só falo e as palavras naturalmente saem da minha boca. Além disso, descobri, recentemente, que as cartas podem ser ótimas aliadas como método de desenvolvimento do meu processo de escrita, com base em um estudo intitulado “Leituras (Pó)éticas”, de Denise Ferreira e Valentina Desideri.
Tanto a poesia quanto a cartomancia me conectam com a espiritualidade, mas acredito que a segunda mais porque se trata de um oráculo. Vejo como um contato direto com a egrégora cigana. Ambas me levam para o exercício da palavra, as que vêm à mente e são verbalizadas e as que são concretizadas. Elas me (e)levam para / (n)a reflexão.
R. N. – Depois de tudo que já falamos sobre ancestralidade, símbolos, poesia, axé e confluências vamos consultar o destino. Pegue seu baralho e imagine se pudesse tirar uma carta para a literatura brasileira contemporânea, qual você tiraria e por quê? O que ela revelaria sobre nosso momento artístico, político e espiritual?
C. F. – Retirei uma carta mentalizando essa pergunta, mas antes idealizei uma possível carta já que falamos da imaginação. Acredito que a carta número 7, a carta da cobra, traduz a literatura brasileira contemporânea. Incluo-me nesse lugar. Aqui, a carta da cobra nos faz pensar na literatura como ferramenta de transformação. Posso dizer que essa mudança se refere ao pessoal e coletivo, ou seja, como a literatura pode nos transformar e como podemos influenciar o coletivo por meio das narrativas e vozes. Escrevemos para transmutar de dentro para fora ou vice-versa. A literatura como cura, transmutação, novos caminhos e surgimentos de novas perspectivas na contemporaneidade.
A carta que saiu no meu baralho cigano foi a 34, os peixes. É muito curioso sair essa carta porque o espelho dela é justamente a cobra. O cenário dos peixes traduz a riqueza literária, o tanto que os cardumes têm a oferecer ao mundo. Sendo assim, imagino a vastidão do mar como a literatura e os peixes como os escritores. Além disso, vale considerar o lado negativo desta carta nesse contexto. Posso dizer que a literatura contemporânea é movida pelos interesses financeiros e todos nós sabemos que ela virou um grande mercado. Infelizmente, não são todos que têm acesso à literatura e não são todos que vivem dela, mas sabemos que ela gera dinheiro e existem pessoas que tiram proveito.

Cassiano Figueiredo é natural de São Gonçalo, município do Rio de Janeiro. Licenciado em Letras Português-Inglês, colunista da Revista Ruído Manifesto, faz parte da equipe de poetas do portal Fazia Poesia, professor, preto, gay, omorixá (filho de Orixá), cartomante e canceriano. Já foi publicado em revistas e coletâneas. “Versos tecidos com fios d’água” (2024), pela Emó Editora, é seu livro de estreia na poesia.

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