WHISNER FRAGA – As fomes inaugurais [resenha]
WHISNER FRAGA – As fomes inaugurais [resenha]

WHISNER FRAGA – As fomes inaugurais [resenha]

por Soraya Viana,

professora, tradutora e colunista da Revista Navalhista.

Poética da invisibilidade

De acordo com levantamento recente da Ponte Jornalismo, há subnotificação dos casos de morte de pessoas em situação de rua em todo o Brasil. 

Segundo o Censo de 2021 da cidade de São Paulo, só na capital paulista a população em vulnerabilidade aumentou 31% em comparação ao levantamento anterior, de 2019. A piora na situação econômica agravada pela pandemia de COVID-19 é apontada como uma das principais causas. 

Porém, é notório que a invisibilização dessa parcela da sociedade começa ainda em vida, e esse é o eixo que move o mais recente livro do finalista do Prêmio Jabuti de 2023 ‒ por Usufruto de demônios ‒ Whisner Fraga. Os minicontos de As fomes inaugurais (Editora Sinete, 2024) fabulam sobre a intimidade de quem, na visão de passantes apressados, não tem rosto ou importância. Talvez esse seja o motivo pelo qual os personagens do livro não são nomeados.

A exceção é helena (sic), a quem o narrador se dirige inúmeras vezes. Enquanto na mitologia Helena foi a mulher mais bela da Grécia Antiga e alvo do rapto que teria originado a Guerra de Tróia, a personagem de As fomes inaugurais é interlocutora do narrador quando ele conta, por exemplo, a rotina de outra mulher objeto de disputa entre dois homens. Aqui, entretanto, ambos a violentam sistematicamente e o filho que ela espera não herdará nenhum império.

A ficha catalográfica do livro o classifica como sendo de contos. A definição é acertada, já que cada um dos textos breves narra um momento de um personagem. Há, porém, uma sequência de eventos, como nas cenas que incluem a mulher grávida. 

Assim, o livro funciona tanto como uma coletânea com mote bem delimitado quanto como uma novela baseada em “tipos” em vez de personagens definidos. Visão, aliás, que espelha a maneira como grande parte de nós enxerga de forma fragmentada e difusa as vivências dessas pessoas na realidade. A estrutura construída por Fraga é inusual e dá a sensação de que vemos flashes enquanto dirigimos nas ruas ou caminhamos pelas calçadas de São Paulo. 

Num dos primeiros contos, usurpar a queda, acompanhamos a construção de um recinto onde os “indesejáveis” serão alojados e, mais adiante, exterminados. A cena, não por acaso, remete aos filmes hollywoodianos de zumbis. Entre uma coisa e outra, os minicontos de As fomes inaugurais discorrem sobre as dificuldades rotineiras das personagens marginalizadas e criam uma espécie de  Na pior em Paris e Londres brasileiro. Diferente de Orwell, porém, o narrador aqui observa os eventos da confortável posição de expectador e membro da classe média. Em passagens que mesclam necessidades sanitárias a reflexões sobre vícios paliativos da vida na indigência, ele nos convida, de nossa posição também privilegiada, a olhar essas pessoas e enxergar, talvez com espanto, a humanidade delas.

A exemplo da obra do autor inglês, a economia narrativa de As fomes inaugurais torna o texto quase jornalístico. No entanto, essa característica contrapõe-se ao léxico sofisticado e a um uso poético da linguagem, que dão à narração um tom etéreo:

“um estilete cintila de deleite, chutam, esmurram, atropelam, correm, o homem lamenta a lembrança perdida, os ferimentos expõem a arritmia da incoerência, a ambiguidade da escassez compartilhada”.

(Trecho de pernicioso, à p.46)

Embora provoque uma sensação de irrealidade, como se histórias similares não fossem rotina em nossas cidades, o efeito do apuro estético é o de um verniz que não esconde as imagens de miséria. O lirismo do texto também faz pensar se ele não seria o único tipo de delicadeza direcionado às personagens, não apenas pela beleza da prosa poética, mas sobretudo pelo olhar que negamos a suas equivalentes no cotidiano. 

Apesar de menções ao poder público e a abusos cometidos por policiais, a obra não descamba para o discurso inflamado. Ela alude a esses elementos da cadeia responsável pela manutenção do status quo sem, no entanto, isentar a sociedade civil da sua parcela de responsabilidade. Um exemplo é o do conto o apetite dispendioso, em que o frio e a chuva “prejudicam o ativismo” do narrador, ao demoverem-no da ideia de levar alimentos a pessoas na rua. 

Para arrematar a composição requintada de Whisner Fraga, o projeto gráfico da edição é assinado por Carla Dias e, além da ilustração de capa de Mônica Côrtes, possui mais quatro belas gravuras no miolo. 

Em cada uma delas vemos, à guisa de retrato da solidão nas ruas, uma única figura maltrapilha. Duas imagens são de mulheres e uma é a de um homem prestes a colocar na boca um relógio antigo. Esta parece alertar para o fato de que o tempo passa de maneiras e com peso diverso para cada pessoa. 

A imagem do homem é repetida ao final do livro mas, desta vez, é colorida de modo a assemelhar-se ao negativo de uma fotografia. O resultado visual rima com o que é feito pelo autor com palavras: elucubrar sobre o que sente e revelar pelo que passa quem está por trás das figuras que, numa olhada rápida, costumamos enxergar sujas, viciadas e violentas. 

Como tais visões alimentam uma sociedade marginalizante? A quais interesses serve a manutenção de tanta fome? Qual será o limite de tamanhos apetites? São algumas perguntas que a leitura nos deixa.


Whisner Fraga

Whisner Fraga nasceu em Ituiutaba, MG (1971) e atualmente reside em São Paulo. É professor universitário e autor de mais de uma dezena de livros de ficção, tendo contos traduzidos para o inglês, alemão e árabe. Escreve para o coletivo “Crônica do dia” e mantém o canal “Acontece nos livros”, no YouTube, em que resenha obras de escritores contemporâneos. É editor na Sinete.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *