NATHÁLIA GOUVEIA – Magnólia em gomos [resenha]
NATHÁLIA GOUVEIA – Magnólia em gomos [resenha]

NATHÁLIA GOUVEIA – Magnólia em gomos [resenha]

por Soraya Viana,

professora, tradutora e colunista da Revista Navalhista.

Insalubridade familiar em gomos suculentos 

O termo “síndrome da boazinha”, popularizado pelo livro homônimo da psicoterapeuta estadunidense Beverly Engel, descreve aquela criança — na maioria das vezes uma menina — quieta, que “não dá trabalho” e torna-se uma adulta sem assertividade e sobrecarregada.

Tendo esse tema em sua espinha dorsal, chega o livro de estreia de Nathália Gouveia, Magnólia em gomos (Nauta, 2025).

Aos 27 anos, a protagonista da novela, Magnólia, mora com a família numa casa “no meio do nada”. A relação com o pai é distante. Com a mãe, é cautelosa. Selma costuma ter ataques de fúria que sempre acabam direcionados à moça; por isso, ela tem o máximo de cautela para não se indispor com a mãe. Se Magnólia tenta reagir e se expressar, o vitimismo de Selma a desencoraja. Nesse contexto, acompanhamos o relato de Magnólia do embate de sua vida exterior com a interior logo após uma perda significativa.

Em meio a comparações com o irmão mais velho, estabelecido em outra cidade, e descomposturas dadas a ela como se fosse criança, Mag leva uma vida sem ambições ou mesmo perspectiva, a não ser “alimentar fantasias bobas sobre ser amada”. Seu estado de opressão psicológica é simbolizado pelo quarto sem janela onde dorme. É emblemático que a moça fique mais à vontade no antigo dormitório — com janela —  do irmão, uma possível sugestão de que, em seu cotidiano, exercer alguma autonomia requer adentrar um espaço reservado à masculinidade.

A única conexão de Mag com o mundo fora de casa é sua amiga Elloise. Na figura de Ello, a protagonista projeta desejos e afetos e parece ser apenas através dessa contato que vislumbra a conquista da individuação e, portanto, de uma versão emancipada de si. 

Nathália Gouveia

A história pincela outros aspectos sociais, como o fato de o trabalho de cuidado quase sempre recair sobre mulheres. Ela toca também na importância dos laços com a ancestralidade, representada no livro pela avó falecida antes de Magnólia nascer, mas de quem a mãe conta muitas histórias.

Ao retratar de forma contundente a repressão psicológica da personagem, a narrativa por vezes assume ares de terror. Também está presente uma característica visual que beira o  gore, em cenas como a morte de um animal, em descrições de texturas e cheiros e na fisicalidade em uma cena de paralisia. Há ainda o aparecimento de corujas e outras criaturas consideradas de mau agouro. Para arrematar, estão presentes gritos tenebrosos.

Os inúmeros símbolos trabalhados ao longo da obra acrescentam um caráter arquetípico que amplia e aprofunda os sentidos da trama. Alguns desses elementos são de ordem doméstica, como demonstra um paralelo entre o formato de gomos de tangerina e dentes de alho: Numa reflexão sobre a textura da casca e do conteúdo e o sabor da fruta em contraponto ao da erva Magnólia conclui que também ela tem “gomos”, cujo teor é disfarçado por sua atitude passiva. Ademais, sendo tangerina a fruta predileta de Selma, a imagem pode sugerir que a mãe devora o potencial da filha e cospe as sementes do rancor.

Outros simbolismos da fruta, a abundância e a prosperidade, aparecem na reprodução da pintura Vertumnus e Pomona numa das primeiras páginas da edição. 

Além da deusa Pomona, outras representações arquetípicas —  Lilith, Empusa e Matinta —  são evocadas e fazem pensar na repetição social de retratar mulheres “fora do padrão patriarcal” como perversas e amaldiçoadas.

É importante, ainda, a alegoria da casa. Em vez de abrigo, o espaço adquire o sentido de ambiente perigoso. E é feito, inclusive, um paralelo com o corpo em que também ele constitui local hostil para se viver: 

Dos lábios rachados e desencaixados, como telhas soltas de uma casa abandonada, escorre um rangido — desses que denunciam a ferrugem das vigas, um aviso de que algo na estrutura cedeu. 

pg. 63

Em contraposição à escassez de amor familiar e ao retraimento social abordados, a escrita de Gouveia é exuberante e sensorial:

Depois um mormaço me envolveu inteira. Um hálito morno colou no meu rosto. As partículas de sua saliva quente se confundiam com o suor das minhas mãos. Ali, a mata me engoliu.

P. 34

Embora solitária na narrativa, Magnólia está bem acompanhada na literatura: O ressentimento que habita sua casa lembra a atmosfera sufocante do clássico moderno de Marguerite Duras, O amante. A aridez no relacionamento mãe e filha recorda o mais recente Morra, amor, de Ariana Harwicz. 

A exemplo das outras duas protagonistas, Magnólia vive uma asfixia familiar que torna a leitura incômoda em diversos momentos.

O livro faz um movimento semicircular e, no fim, retoma a frase que o iniciou. Porém, se no início da narrativa Magnólia fala do mofo em seu quarto, após passar pelos eventos narrados ela escancara as portas de casa “para deixar o tempo entrar”. Assim, mesmo após nos introduzir no caos de uma vida “em gomos”, ela demonstra que não é tarde para encarar o sol. Uma mensagem inspiradora a todas as pessoas que, pelos mais variados motivos, temem expor ao mundo a própria polpa.


Nathália Gouveia

Nathália Gouveia, 29 anos, pernambucana, é psicóloga clínica e escritora estreante. Escreve inspirada pela escuta psicanalítica e pelos fragmentos e fissuras da subjetividade feminina.

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