A geografia de uma obsessão como método para depurar o desamparo com poesia [resenha]
A geografia de uma obsessão como método para depurar o desamparo com poesia [resenha]

A geografia de uma obsessão como método para depurar o desamparo com poesia [resenha]

por Soraya Viana,

professora, tradutora e colunista da Revista Navalhista

(perfil completo).

Presente em inúmeras discussões contemporâneas, o tópico da responsabilidade afetiva tem ganhado cada vez mais espaço no campo da literatura. Vozes de profissionais da psiquiatria e da psicologia como Natalia Timerman e Josie Conti já delinearam em sua prosa, ficcional ou não, algumas imagens do chamado ghosting.

Em Bicho geográfico (Toma Aí Um Poema, 2025, com prefácio de Bruno Inácio), Marina Faloni chega para oferecer uma contribuição ao debate e, por sua vez, abordar o tema sob a ótica ainda mais sensível da poesia. 

Nos poemas da autora mineira, um eu-lírico ferido revela ao ex-amante todos os sentimentos que ele nunca deu a oportunidade de serem expressos em uma conversa olho no olho. Estruturado em segunda pessoa, o desabafo faz com que o leitor torne-se, de uma só vez, partícipe e testemunha da ascensão, do apogeu e da ruptura de uma relação tão intensa quanto efêmera e significativa na mesma medida da angústia que provocou. As emoções daquela que sentiu-se negligenciada nos são transmitidas por meio de versos livres e com uma linguagem que, embora direta (como não poderia deixar de ser num desafogo) consegue exprimir com riqueza lírica toda a frustração e a mágoa ‒ mas também a afeição ‒ de quem se vê despojada da chance de dar um encerramento à altura da comoção vivida.

Desse modo, a poeta elabora um mosaico narrativo do desamparo e da fúria após o abandono inexplicado do eu-lírico pelo seu amante, um geógrafo. Construídos essencialmente a partir de metáforas das áreas da geografia e da geopolítica, os poemas apropriam-se do “dialeto do inimigo” num exercício de elaboração das experiências e na tentativa de resgate da própria identidade. 

A exemplo dos sobejos dessa ligação amorosa, Bicho geográfico tem como base uma estrutura fragmentada; assim, a obra ilustra a confusão subjacente a um modelo de relacionamento pós-moderno em que, com o apoio da tecnologia, o alvo do afeto mantém-se ao mesmo tempo onipresente e ausente na vida do outro.

Numa rara combinação de vulnerabilidade e ímpeto, o caráter sensorial da poesia de Marina Faloni torna quase palpável a intensidade e o abrasamento dessa paixão-fantasma. 

(…) olhando este pequeno espaço por onde se vê o sol, desejo que você se ponha em mim e renasça na manhã seguinte.

(p. 29)

Seus versos exprimem de modo visceral a consumição devastadora causada pela deserção e relatam a árdua tarefa de quem fica para trás, com o encargo de organizar os destroços remanescentes do vínculo bruscamente cortado.

Desejei passar em uma larga avenida, que suporta altas velocidades.

Me deparei com essa viela coberta de paralelepípedos que nos fazem andar em câmera lenta e que termina em um beco sem saída.

(p. 21)

A primeira orelha de Bicho geográfico nos conta que a obra “se fez no caminho de uma obsessão”. A leitura acontece de maneira igualmente compulsiva, pois esse é um livro breve mas contundente, tal e qual as paixões de ocasião que, quando não filtradas pela responsabilidade com o parceiro, podem deixar vestígios emocionais indeléveis. 

Por outro lado, Bicho geográfico nos mostra que, uma vez eliminados os ressentimentos e o apego, a matéria da vida readquire a necessária fluidez e toda a potência poética e dinâmica que o espírito humano nasceu para exercer.
Marina Faloni é também advogada. Bicho geográfico é sua estreia na literatura. Para conhecer as inspirações da autora e outros detalhes de sua criação poética, leia aqui a entrevista que a Revista Navalhista fez com ela.


Marina Faloni

Marina Faloni é é natural de Frutal-MG. Graduou-se pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Desde a adolescência escreve poesia como refúgio para a compreensão das relações humanas e reconstrução da memória. Bicho Geográfico (TAUP, 2025) é seu livro de estreia. Constantemente publica em antologias e revistas.

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