ANA FLÁVIA NEJAIM – Contos subterrâneos [resenha]
ANA FLÁVIA NEJAIM – Contos subterrâneos [resenha]

ANA FLÁVIA NEJAIM – Contos subterrâneos [resenha]

por Soraya Viana,

professora, tradutora e colunista da Revista Navalhista.

Dos subterrâneos do cotidiano: Quando vem à tona o disparate nosso de cada dia

O que podem ter em comum um enlutado aliviado, uma colecionadora de bonecas (que antecipou a febre dos bebês reborn em pelo menos um ano), donas de casa exaustas, funcionários explorados por gerentes pretensiosos, casais em relacionamentos tóxicos, famílias “tradicionais”, uma mulher escravizada por padrões de beleza e um gato ciumento? 

Esses e outros personagens fazem parte do elenco da primeira coletânea de contos da paulista Ana Flávia Nejaim, após sua estreia na literatura com o romance Penélope: No mundo dos guarda-chuvas perdidos (Ópera Editorial, 2021). 

Em Contos subterrâneos (Editora Litteralux, 2024), a autora apresenta literatura fantástica brasileira em toda a sua potência: são 18 histórias reveladoras de absurdos espantosos da contemporaneidade que tendemos a normalizar por meio da repetição impensada de padrões.

As figuras concebidas por Nejaim vivem na pseudotranquilidade até o momento em que incoerências dissimuladas sob as camadas de “normalidade” emergem de modo inesperado — em forma de um nevoeiro sinistro, um recém-nascido com aparência bizarra ou alguma outra aberração. Paradoxalmente, ao final de cada história fica a sensação de que o mais inusitado não é o aspecto arrepiante delas — que aludem a lendas fantasmagóricas e mitos amazônicos — mas sim o comezinho.

Além das emoções e dos desejos suprimidos no subterrâneo literal e metafórico que ambienta grande parte das narrativas, outra presença recorrente é a da natureza, com ênfase na alternância entre seus aspectos indomáveis e os amenos e a conexão humana (esquecida) com eles.

Sinto que, debaixo da terra, existe tanta vida quanto aqui em cima. Ao sentir isso, reconheço meu poder.

Trecho de Casaco cinza chumbo com algum brilho

Um dos destaques do livro é a história — selecionada para publicação posterior em uma coleção de Halloween — A fome de Cthulhu. O enredo não apenas constrói uma intertextualidade com o conto de H. P. Lovecraft, mas também o moderniza, ao penetrar as entranhas do monstro do mundo do trabalho. O tema das relações trabalhistas, aliás, é discutido mais de uma vez ao longo dos contos que, não obstante, apresentam uma variada gama de assuntos e de vozes narrativas. 

Vale destacar também o trabalho de linguagem realizado pela autora. Seu uso preciso das palavras concatena de modo inteligente a atmosfera de suspense (e por vezes, horror) presente na maioria das histórias. Ao lançar mão da polifonia e da economia narrativa, a autora estabelece com clareza o pano de fundo insólito ao mesmo tempo que tece críticas sociais e de costumes.

A escrita de Nejaim ainda combina, com maestria, a força das imagens fantásticas e dos elementos sobrenaturais a uma inesperada delicadeza. Em algumas das histórias, há momentos de sutileza lírica e até de forte emotividade, como é o caso de Entre as estações — uma espécie de viagem insólita em que o narrador, ao embarcar no metrô, revisita as próprias vivências marcantes e também as de outros passageiros. 

Uma terceira faceta da obra, a sensualidade, revela-se em narrativas como a de Baunilha ‒ que descreve a relação de um gato e sua tutora — e Cata-vento — cuja protagonista redescobre a autonomia em meio ao “entulho” da domesticidade.

O contraste de todos esses atributos, em vez de atenuar o caráter fantástico da obra, acaba por reforçar a contundência característica do gênero. Além do que, trabalhadas de maneira equilibrada em cada texto, as oposições embelezam e singularizam a escrita da autora. Os predicados acima, aliados à originalidade da voz de Ana Flávia Nejaim fazem de Contos subterrâneos uma leitura rica e, portanto, altamente recomendada a fãs de histórias fantásticas e de literatura de alta qualidade como um todo.


Ana Flávia Nejaim

Ana Flávia Nejaim é professora de redação e de Língua Portuguesa do Ensino Médio. Bacharel e Licenciada pela Universidade de São Paulo e Mestre pela Universidade Mackenzie (Bolsista-Capes), dedica-se, há mais de quinze anos, à compreensão do texto, nas suas mais diferentes facetas. Quando tinha quinze anos, descobriu nos livros Viagem e Vaga-música, de Cecília Meireles, as maravilhas da Literatura. Desde então, tem colecionado as mais deliciosas leituras, compartilhadas com amizades queridas e com seus adoráveis alunos. 

5 comentários

  1. Jhone S M de Oliveira

    Em primeiro lugar, parabéns pela excelente coluna registrada na revista navalhista, por Soraya Viana. Lendo essa coluna, da vontade de ler novamente o livro de Contos da Ana Nejaim.
    Novamente? Sim! Já li e já ouvi vários trechos do livro, através de algumas rodas de conversas que tive a imensa honra de participar, com a ilustre presença da autora Ana Nejaim.
    O que falar desse livro incrível da Ana!? “Contos Subterrâneos”.
    Uma leitura super interessante e agradável de fazer. Uma emoção diferente a cada conto lido.
    Recomendo essa agradável leitura a todos que ainda não leram, para que também sintam esse mix de emoções a cada conto lido.

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