por Gustavo Freixeda,
escritor e colunista da Revista Navalhista.
O rapaz latino-americano de Belchior é uma figura indelével da cultura do país. Como chegou a esse patamar? Bem, suas notas e frases, feitas cuidadosamente para parecerem sem cuidado, resumem bem: “Sons, palavras, são navalhas”, cantava o poeta de voz anasalada, “e eu não posso cantar como convém\ sem querer ferir ninguém.” O jovem sobralense, de um mosteiro no Ceará às paradas das mais tocadas, feriu, feriu e feriu até deixar sua marca.
Tomando o verso de empréstimo, o livro Palavras são navalhas faz valer o mesmo canto do velho Belch. Não é qualquer palavra que importa a essa antologia, primeiro lançamento da Editora Sertão Pasárgada, mas aquelas capazes de cortar, riscar, abrir feridas, fazer cicatrizes. Isto é, não é o sonoro, o rítmico, o irretocável que têm vez aqui. A predileção clara foi pelo pontiagudo, o cortante, pela bola que rola cheia de arestas.
Organizada por Aliedson Lima, a coletânea dá espaço para cinquenta vozes vindas de praticamente todo o território brasileiro — e até além dele, já que há entre essas vozes a participação de uma poeta haitiana. Esse gesto de descentralização é a primeira, e quiçá a mais importante, estocada do livro: recusar a geografia tradicional da literatura brasileira, marcada pelos estados do Sudeste e do Sul, para construir um mapa plural, feito de sotaques, dores, memórias e insurgências vindas de todos os pontos cardeais.
Essa lógica de seleção atravessa toda a obra e se materializa na própria estrutura dela: à semelhança das regiões do país, temos cinco seções, chamadas de “navalhários” (neologismo que nomeia territórios de fricção). São como estojos de lâminas, nos quais os poemas se agrupam pela intensidade e temática com que atravessam o leitor.
O “navalhário inicial ou a navalha que risca a face do tempo”, por exemplo, abre a coletânea com textos curtos que já anunciam a dimensão cortante de todo o conjunto, como quem prepara a pele para o primeiro risco. Em outra seção, “navalhário para trucidar corações que lutam ou mundonavalha”, a poesia se torna trincheira contra desigualdades sociais e violências históricas, levando a tiracolo uma baioneta de versos que se convertem em denúncia, crônica social e testemunho das dores coletivas. Ecoam vozes que falam da fome, da guerra, da destruição ambiental, de geografias periféricas tantas vezes apagadas.
O país inteiro, e um pouco do Haiti, parece caber nesses versos, com imagens que remetem tanto ao cotidiano quanto a catástrofes históricas.

Há espaço também para a memória íntima, para a evocação de ancestrais, para as fissuras do afeto e para a combustão do desejo. A seção “navalhário para aniquilar corações que amam ou erosnavalha”, mais dedicada aos afetos, desarma qualquer expectativa de lirismo brando. Amar, aqui, é trepidar sobre a linha fina que separa o gozo da ferida. O grito de prazer é o grito da tortura. Mesmo os poemas que evocam infância e lembranças familiares são recordações que arranham a superfície da vida adulta e lembram que o passado também dói aqui e agora.
Além dos citados, também compõem o livro o “navalhário para rebobinar corações que lembram ou verdenavalha” e o “navalhário para esmagar corações que pulsam ou vidanavalha”. Ao final, depois de cada uma das cinco seções, contemplamos uma verdadeira façanha: a antologia Palavras são navalhas consegue ser, a um só tempo, múltipla e coesa.
Não há um único estilo que domine, nem uma escola ou tendência que se sobreponha. O fio de unidade é, como afirma Lima, “o poder de corte de cada poema”. É isso que faz com que versos sobre guerras distantes dialoguem com cenas de quintal, que experimentações formais convivam com narrativas quase prosaicas, que o coloquial se entrelace ao hermético.
Já que citei Belchior no início, por que não convocar outro gigante à roda? Há aquela famosa frase de Leonard Cohen, cantada repetidamente em Anthem, que, em tradução livre, diz “há uma rachadura em tudo, é por ela que a luz entra”. Os cortes presentes na antologia transformam-se em um clarão imenso, resultado das cinquenta punhaladas distribuídas ao longo do livro.
A poça de sangue que escorre de Palavras são navalhas respinga a mensagem: escrever é sempre risco e ler é também aceitar a vertigem do corte.
Segue abaixo, o link para a pré-venda. Estamos nos últimos dias, vai até o dia 03/10. Adquira um exemplar por aqui:

