por Gustavo Freixeda,
escritor e colunista da Revista Navalhista
Entre cacos e frestas: a poética do provisório em Prosas miúdas, algumas mudas
A plaquete ocupa um lugar curioso no universo da literatura. Ela sapateia entre o livro e o panfleto, nasce do desejo de publicar livremente, sem excessos, de lançar ao mundo o que não é um grande projeto, livre da opressiva obrigação de completude. Em suas páginas, o texto encontra o terreno para rumar mais livre e traçar sua trajetória em múltiplas formas, podendo andar, correr, correr rapidamente, alçar voo, se catapultar… A voz do autor, se assim for para ser, tem todo o direito de desafinar. E isso é belo.
Pois bem. Desde o início Prosas miúdas, algumas mudas de Giovani Miguez se diz um punhado de escritos que nasceram da necessidade de companhia em dias de silêncio. Como o próprio define, esses textos são “cacos de silêncio espalhados pelos cantos da vida”. Há aqui tanto o reconhecimento da incompletude, da provisoriedade, quanto também da beleza que pode habitar nesses restos.
A primeira seção, as tais “prosas miúdas” do título, reúne pequenos relatos, lembranças, contemplações que atravessam o cotidiano e se abrem para o simbólico. O gesto banal de se deitar sobre uma pedra junto ao riacho, por exemplo, vira uma experiência meditativa, na qual o silêncio provoca na mesma medida em que acalma. O lirismo contemplativo transforma paisagens naturais em espelho da vida interior.

Já outros textos assumem um tom mais narrativo, como um gato, uma borboleta e um sapo que constituem quase uma fábula de moralidade. E há também aqueles que se voltam à experiência de leitura e escrita, como a relação positivamente resignada com os livros acumulados que nunca serão lidos por falta de tempo e vida, convertidos em metáfora para o desejo insaciável de conhecimento e para a consciência da própria ignorância. O vai-e-vem entre natureza, cotidiano e pensamento assovia uma amplitude de interesses que, por vezes, beira a dispersão, mas que faz sentido dentro do escopo da plaquete, que é registrar o fluxo daquilo que atravessa o autor.
Na segunda parte, “algumas mudas”, a prosa dá lugar ao verso. São poemas curtos, muitos deles próximos do aforismo, que transitam entre o humor, a confissão e a reflexão filosófica. A forma enxuta reforça a proposta de escrever não como para esgotar, mas para lançar sementes — “mudas” que podem ou não florescer.
A última seção, “pequena saga existencial”, se divide em quatro atos — nascimento, desafio, conquista e partida — para dar à obra uma estrutura quase didática, lembrando a cadência de poemas de cordel ou de uma parábola moralizante. O excesso de explicações pesa, justamente porque, beirando a obviedade, soa desnecessário. Por outro lado, a escolha também pode ser lida como fidelidade ao gesto de falar sem rodeios. Ainda que com pouca imaginação, o porquê é claro.
Um aspecto interessante da plaquete é a alternância entre registros. Ora a linguagem é mais coloquial e direta, ora se aproxima de uma solenidade quase litúrgica. Essa irregularidade é a escolha consciente de não uniformizar a experiência, de abraçar a plaquete como formato e como desapego a uma estética clara. Ao contrário do livro de fôlego, que exige coesão, a plaquete se permite oscilar, é um campo de liberdade em que o autor não precisa decidir entre o poema e a prosa, entre o íntimo e o universal, entre o relato e a parábola. As plaquetes estão em alta novamente, e esse talvez seja o principal motivo: nada mais condizente com o mundo atual do que registros esparsos de uma sociedade em cacos.
Escrever é tanto buscar companhia para si quanto oferecer companhia ao outro. A plaquete se assume como uma fresta no cotidiano, um intervalo de escuta. Essa dimensão confessional não é sentimentalismo barato, é um reconhecimento da literatura como ferramenta de presença.
O fazer literário não precisa, necessariamente, ser monumental: pode ser miúdo, pode ser provisório, pode ser apenas o registro de uma passagem. Pode ser miúdo, pode ser mudo. Ainda bem.

Giovani Miguez é poeta, escritor e servidor público. Especialista em Sociologia e Psicanálise, mestre e doutor em Ciência da Informação, com formação em Biblioterapia e mediação de leitura. Nascido em Volta Redonda (RJ), hoje reside no Rio de Janeiro. É autor de 18 livros, entre eles os recentes Um elogio à preguiça, Amor fati e Notações paridas (Uiclap, 2024). Na sua poesia, Miguez explora a expressão e reflexão existencial. Ora lírico, ora político, ora científico, mas sempre est(ético), o poeta segue sendo profundo em suas generalidades.

![GIOVANI MIGUEZ – Prosas miúdas, algumas mudas [resenha]](https://revistanavalhista.com/wp-content/uploads/2025/10/1000199499.png)