NAVALHAR É PRECISO – CARVALRÔSS [entrevista]
NAVALHAR É PRECISO – CARVALRÔSS [entrevista]

NAVALHAR É PRECISO – CARVALRÔSS [entrevista]

REVISTA NAVALHISTA — Vivemos em um tempo em que os símbolos digitais (likes, notificações, algoritmos, influenciadores, seguidores) acabam assumindo funções semelhantes às dos signos espirituais (bênçãos, sinos, karmas, sarcedotes, discípulos ). Mostrando como “peixes que seguem cobiçando píxeis” ilustra uma fé atrelada à visibilidade e ao algoritmo. Essa justaposição cria pontes inesperadas entre tecnologia e transcendência. E essa dualidade presente nos poemas do livro A Espiritualidade da Sobrevivência (Minimalismo, 2024) é bastante instigante, sobretudo nas analogias e metaforizações entre signos de figuras presentes em interações digitais e signos e figuras presentes em interações nas ideologias espirituais. Como você concebeu esse diálogo entre o digital e o espiritual? Até que ponto essas analogias são críticas ao nosso tempo ou já representam uma nova forma de religiosidade contemporânea?

CARVALRÔSS A espiritualidade é um tema importante à humanidade em qualquer tempo, qualquer civilização. É da natureza humana buscar alívio, conforto e segurança: coisas que produzem a sensação de “paz”, mesmo entre ateístas e agnósticos. A presença das tecnologias digitais não é tão antiga, porém, depois de sua chegada, elas parecem tão necessárias à “manutenção da vida” quanto o cultivo de ideologias que “orientem ao Oriente”. A partir dessa relação foram produzidos os poemas da série que dá nome à obra. Como vocês observaram, o processo de construção dos textos passa pela escolha de signos existentes nos eixos semânticos de “espiritualidade” e “redes sociais”, por exemplo: “peixes” e “píxeis”, que possuem os mesmos significantes. Tal processo também ocorre no poema “Nuvem Luminosa, Anzol Iluminado”, que se relaciona com determinados trechos de Mateus 17, quando após a aparição de uma nuvem luminosa, pescadores ouvem a seguinte orientação: “vai ao mar, lança o anzol e toma o primeiro peixe, e quando lhe abrires a boca, acharás uma moeda”. Como sabemos, o método de ensinamento dado para e pelos apóstolos consistia em “admoestar”, isto é, advertir com ternura. Acontece que o termo “admoestar” contém em si os significantes “a, d, m, o, e”, os mesmos que do termo “moeda”, que por seu turno é metonímia de “capital”. Daí em diante, depois de articulações fonológicas de palavras que orientavam como “recolher das bocas dos peixes as moedas” surgiu o termo neológico “admoedar”; além de outros neologismos, como “nubidólatra”, que seria um “idólatra de nuvens”. Então temos em suspensão alguns traços de uma “espiritualidade sob admoedação”, ou seja: apontamentos não a respeito, em específico, das práticas religiosas, mas sim da continuidade da exploração e do mercado que é feito sobre os vazios do espírito humano, o que produz como consequência, a vulgarização das espiritualidades e das relações entre indivíduos. O poema “Lides nos Portais”, por exemplo, refere ao trabalho dos que “vendem santidade” valendo-se pela “fé da ilusão”, aludindo à famosa cena em que, chegando às portas de um templo, um Cristo expulsa os vendilhões. Porém aqui a lógica é outra e os versos ordenam: “aos ilusionistas / não peças licença”, isto é, não os retire dali: inclua-se a eles, traga suas moedas e passe a segui-los.

R. N. — Para nós é fato que a voz poética de Carvalrôss parece emergir do esgotamento e não de um leve desespero pasmado, mas antes de uma tensão que exige ser sentida. De que modo essa presença do “esgotamento estético” em A Espiritualidade da Sobrevivência (Minimalismo, 2024) transforma o leitor: ela provoca catarse, desconforto, consciência ou uma mistura desses efeitos?

C. — Gostei muito de sua expressão “tensão que exige ser sentida”, porque as formas observáveis na obra procuram materializar vozes que expressam as tensões diante das expectativas frustradas, das perdas, das obsessões, isto é: as tensões de quem sobrevive ao desemprego, às violências, aos abandonos, às catástrofes e se reinventa a partir dos estilhaços, das partes separadas do que já não é inteiro, porque está quebrado ou demolido. A relação com a tensão se estabelece à forma, quando por exemplo, na série “Poemas do Abismo”, a fragmentação dos eventos ou sensações é exposta por enunciações que engendram cadeias metonímicas de signos, isto é: todo movimento no sentido de abstração, metaforização ou prolongamento da impressão (do conteúdo) é realizado na plano da expressão,  não pelo uso da metáfora, mas pela manipulação de partes do signo/metáfora, um procedimento similar a alguns processos de singularização prosaica que auxiliam no trabalho de elevar o texto da condição da denotação para o nível da conotação. Mas eu não me arrisco em dizer o que estas articulações provocam aos leitores. Desde o lançamento da obra, ouvi muitas considerações, todas igualmente legítimas e diferentes entre si e, naturalmente, sempre me interessa ouvi-las.

R. N. — A linguagem se rompe, mistura de pop e erudito, litúrgico e grotesco, apontando para uma estética dissonante. Conta para gente em que medida essa dissonância formal presente no livro enriquece ou dificulta a recepção da obra? Quais perdas e ganhos ela implica?

C. — De fato, comparando as séries de poemas entre si, são observáveis distinções em linguagens e formas. No caso de “Fraturas Constelares” a diferença chega a ser no próprio estilo. Isto acontece, principalmente, por uma mudança de concepção sobre a arte poética: a passagem de uma perspectiva aristotélica (poética como arte mimética) para uma perspectiva poundiana (poética como procedimento de concreção da informação estética). O livro estava concluído quando iniciei os estudos e experiências que resultaram nos poemas de “Fraturas Constelares”, que foram produzidos segundo procedimentos muito diversos em relação aos demais poemas do livro mas, mesmo assim, optei em os incorporar à obra, escrevendo ainda mais um poema (Teia de Aranha, Mosca Azul) para antecedê-los e justificar sua disparidade estética se, por exemplo, comparados aos poemas de “Cólera Contra os Pedernais”. A “Mosca Azul” viria ser metáfora de arte poética e intertextualiza-se com certo poema de M. de Assis (cujo título é “Mosca Azul”); enquanto a “teia de aranha” refere à habilidade do poeta que pretende tecer uma trama capaz de capturar a mosca azul. É interessante pensar sobre a imagem “aranha aristotélica” e seu processo em perceber que a mosca azul não pode ser capturada pela mímese, mas sim inventada a partir da materialidade da palavra. Hoje, percebo que esta característica do livro pedia mais atenção que um poema metafórico introdutório: pedia ao menos uma consideração no prefácio que pontuasse tais detalhes e o modo segundo o qual organizou-se os poemas. Por outro lado, dos textos de essência mimética emergem diferentes vozes que permitem essa mescla de linguagem erudita e coloquial, litúrgica e grotesca, oscilando entre nitidez e opacidade.

R. N. — A espiritualidade descrita na obra é “suja, urbana, embutida nas vísceras da existência precária” recusando a forma estética contemplativa tradicional. Como essa espiritualidade marginalizada em A Espiritualidade da Sobrevivência (Minimalismo, 2024) reconfigura nosso entendimento de fé, sacralidade ou transcendência em cenários de ruína?

C. — Bem, como comentei, parece-me que nosso entendimento sobre a fé, o sagrado e transcendentalismos vêm se reconfigurando à medida em que se transformam nossas lentes (e telas) que, buscam sempre pelo o que é mais fácil, breve e reconfortante, ou seja: o que pode ser “instagramável” também poderá ser “contemplativo”, sob certa medida de Bom / Belo. As formas de A Espiritualidade procuram ser o contrário, utilizando-se de recursos como estruturas rítmicas que suprimam a fluidez do verso (como em “Nuvem Luminosa, Anzol Iluminado”) para salmodiar o milagre infame (de monetizar a qualquer custo), ou pela concentração de consoantes que contrapõem e obscurecem a “cor da vogais”, isto é: se as telas são objetos que brilham, o versos devem ser algo que perde o brilho; ou ainda pela repetição de significantes que funcionam como redução ou síntese de termos como “r-e-d”  (que formam o radical de rede) e reaparecem como “redrar”, “redarguiu”, “redários” ou em outras posições como em “adrede”,  “redenção”, e no neologismo: “redenominador”. Mas sem dúvida, os elementos mais explícitos estão em contrastes e antítiteses, como a “redenção que vem das redes”, ou como o “sangue de um homem morto que escorre como xarope de criança”, ou com a personagem “Marina”: uma criança que se diverte torturando insetos. Esse caminho oposto pretende não a reconfiguração, mas o apontamento sobre o quanto foi reduzido o espírito humano (e sua relação com inúmeras manifestações do sagrado, isto é, sua relação com “valores” necessários à existência).

Carvalrôss

R. N. — A segunda parte de A Espiritualidade da Sobrevivência (Minimalismo, 2024), intitulada Fraturas Constelares, instiga ainda mais pela invenção de conceitos próprios, que expandem os limites da linguagem e da técnica poética. Todos ficamos curiosos para saber como você conseguiu criar os poemas dessa seção. Conceitue para nós o que são Cagografias Estilísticas e Fixação Constelar. Como você condensou essas técnicas na construção da obra?

C. — Ah, os poemas de Fraturas Constelares são meus prediletos! O livro estava concluído e, em meados de 2024 iniciei um laboratório de caráter experimental. O plano era partir da concepção da (como nos ensina Haroldo de Campos) arte poética como uma tecnologia de informação, para então explorar fenômenos linguísticos (como vícios de linguagem ou figuras de retórica) que pudessem ser manipulados sob procedimentos de estilo relacionados à poesia concreta. Foi assim que me interessei pelos fenômenos cacofônicos (cacofonias, nós sabemos: sonoridades desagradáveis que vez ou outra aparecem nos discursos comuns). Embora eu buscasse construir textos cujos aspectos exprimissem bizarria, não os queria grosseiros, por isso, manipulava o ritmo em modos de suprimir as sonoridades cacofônicas preservando suas grafias, por isso o termo “cacografia”. O processo, portanto, consistiu em articular significantes e monemas de diferentes palavras para inscrever nos sintagmas, ora as mesmas palavras, ora outras palavras. Tendo conseguido manipular o fenômeno da cacografia, percebi que os significantes tornaram-se signos estilísticos e imaginei aplicá-los associados à técnica de “poema constelar”, de A. Rimbaud. Na técnica Rimbaudiana, a “constelização” (em poucas palavras) baseia-se na utilização de signos constelados num “planetarium” fixo de significados e associações formando um sistema de repetição de signos/significantes em diferentes pontos dos textos. Minha ideia foi engendrar um planetarium de signos desconstelizados pelo procedimento da cacografia estilística. Numa descrição simplificada, tais signos não existem no texto, mas sob certas circunstâncias, podemos fazê-los aparecer. Um exemplo: 

(texto 1)

De ômega, toda onça

detém um queimor de matar: 

as garras negras, gardanhas  

de furtacor tarrafeando vão

boi e bruma, tarquara 

vibrando pânico, medindo 

salto, rabilonga tocaiando 

no rumor de não haver licenças:

só cravaduras, garganta 

ampla, antecor, tarasca.

De onça, desgarra-se magma talhando 

rastros em penhasco: mergulho. 

Analisando as sílabas (monemas) realçadas em negrito, temos as seguintes combinações:

(texto 2)

gato; morde; rasga; corta; mata; come; – formações que se repetem numa forma fixa, “constelizada”.

Neste exemplo, o fluxo dos versos do texto 1 refere aos modos comportamentais inerentes aos felinos em suas práticas predatórias em linguagem metafórica , mas em simultâneo, inscreve–se no próprio código do sistema um segundo código (texto 2) que engendra um discurso aparentemente documental (porém, metonímico) que, também refere uma descrição dos gestos predatórios dos gatos, conferindo ao poema uma peculiar plasticidade estética de natureza semiológica que, a um só tempo, apresenta dois discursos acerca de um mesmo tema: tanto no plano de expressão quanto no plano de conteúdo. Se considerarmos que combinações sintagmáticas (na fala comum) estão associadas ao aleatório, e mais: os versos (pensando-os como sintagmas) do texto exposto  apresentam combinações de monemas, emergindo destas um novo texto que explora o mesmo conteúdo (mas com emprego de metonímias), podemos imaginar combinações cujas estruturas vêm próximas de sua máxima condensação pela saturação destas formas sintáticas, imprimindo pressão contra à aleatoriedade das construções comuns. Nos discursos, ao longo das cadeias sintagmáticas, é rotineiro encontrarmos unidades idênticas que se repetem. Esta repetição, porém, é corrigida pela distância que há entre tais unidades. No caso de nossa análise, os monemas. No poema apresentado, observa-se a redução destas distâncias entre unidades não idênticas que, combinadas, inserem outros signos na anatomia do sintagma, signos que aparecem portanto como elementos do código de conotação. No poema visto como exemplo, aplicou-se uma abordagem tautológica, a considerar os textos que, mesmo quando separados um do outro, desenvolvem o mesmo tema, a mesma cena.

R. N. — Apesar de toda a dor e ruína, percebemos que no seu livro há certeza de uma esperança, exausta, mas presente, na persistência de existir. Essa esperança arrastada em A Espiritualidade da Sobrevivência (Minimalismo, 2024) consegue ser uma força transformadora? Ou ela é antes pura resignação poética?  

C. — Bem, a “persistência em existir” é exatamente sobreviver, apesar da injustiça, da fome, da doença, do ódio. Todas essas forças transformam e afetam. Pensar sobre isto faz lembrar Baudelaire quando diz que  a “vida é um hospital no qual todo paciente deseja mudar leito”. Quer dizer, não há procura pela cura, mas pela mudança de perspectiva, sobrevivendo. Já que falei em Baudelaire, devo também falar de Belchior, quando diz “a força fez comigo o mal que a força sempre faz (…) e hoje eu canto muito mais”. O canto é a manifestação da vivacidade do espírito: seu existir. Assim como o verso, a vida é irreversível e, cada verbo pronunciado é capaz de modificar o significado do que foi escrito antes, ou seja: a palavra ressignificada é prova da metamorfose. Atravessar metamorfoses é sobreviver. O fim das palavras é a morte do espírito. Aqueles que ainda não cumpriram todas as palavras lutam pela sobrevivência.

R. N. — Lembrando aqui que Bakhtin analisa autores como Rabelais, para quem o uso da linguagem “grotesca” e “bizarra” servia como meio de expressar vitalidade e subversão, afastando-se do que era considerado norma. Alguns desses elementos também aparecem na obra. Para você, como é desenrolar a arte poética se distanciando da fala, o máximo possível, até assumir um tom de bizarrice? Qual seria a vitalidade que você busca na poesia?

C. — Distanciar-se da fala comum é rebelar-se. As obras que me inspiram possuem a característica de desafiarem as tradições correntes de suas épocas, seus sensos e conceitos. Consequentemente, é algo que procuro manifestar em meu livro. Mas isto também é um processo, tanto de percepção (de outras obras) quanto de desenvolvimento das próprias habilidades. A revolta pode começar pela crítica à arte de nosso tempo, por exemplo. Desafiar os conceitos estéticos “em alta no momento” já é um caminho para a subversão. Este tema é abordado no “Soneto Neo-barroco para Gregório de Matos” , o qual é uma paródia sobre o poema do poeta baiano (Triste Bahia! oh Quão Dessemelhante) que, por sua vez, é também uma paródia sobre o poema “Formoso Tejo Meu” (de Francisco Rodrigues Lobo). Lobo refere à degeneração de sua própria vida; Matos expõe a degeneração do estado da Bahia, enquanto o meu poema aponta para a degeneração das artes literárias que, tocadas pela “máquina mercante” fez de nós “verborrágicos, doentios poetas da meta”. Em síntese, eu diria que a busca pela bizarria é também a busca pela diferença, pela autenticidade.

R. N. — Encontramos também nos seus versos o eu poético convivendo com a falência simbólica, culpa, confissão; um sujeito em queda que, contudo, continua a insistir em dizer “eis-me aqui.” De que maneira essa insistência no “eu” serve como resistência estética e como testemunho de uma subjetividade fragmentada?

C. — Boa parte deste livro foi produzida durante o tempo como de estudante da escola de psicologia, em seus semestres finais. Trabalhando com tese de conclusão em psicanálise, o capital bibliográfico que eu consumia era em teoria psicanalítica. Mas não me utilizei apenas dessa abordagem. O poema “Contrata-se”, por exemplo, foi desenvolvido a partir de um tema pertinente à Psicologia do Trabalho, sob uma ótica marxista. Mas tais influências dos estudos em psicologias, em especial psicanálise, são mais salientes na série “Poemas do Abismo”, que originalmente, chamava-se “Poemas Abismais”. Estes poemas procuram representar um enunciador obsessivo que evita a cena analítica porque isto significaria reconhecer a precisão de auxílio de outra pessoa (possuidora de conhecimentos especializados – em síntese: um “outro simbólico”), e diante de suas tensões neuróticas, este enunciador faz uma espécie de auto análise, o que, obviamente não funciona e não o retira de um estado de absoluto solipsismo no qual a realidade é caótica e ambígua. São ruínas de um espírito quebrantado reorganizadas como alegorias  de “Um carro Alegórico Para o Carnaval de BH” à persistência na elaboração de significados para o que permanece às catástrofes, como indaga a si mesmo o enunciador: “Há sentido para o que não morre?”. Assim se mantém vivo o seu discurso. Falar é atrever-se, é revoltar-se, é afirmar “eis-me aqui”.

R. N. — Outro sentimento que nos apetece é de que a obra parece se mover entre o hermético e o brutalmente direto, nem sempre privilegiando o conforto da clareza. Para quem lê A Espiritualidade da Sobrevivência (Minimalismo, 2024), qual é o papel do leitor nesse jogo de decifração? O quanto ele precisa se despir de expectativas?

C. — Penso que a maior parte das pessoas que se interessam em ler poesia, pela própria natureza do gênero, procuram pelas quebras de expectativas, pelas surpresas e opacidade das mensagens e informações. E como leitor, eu diria que, quando decidimos ler autores que  desconhecemos, isto é, uma leitura inteiramente nova, de algum modo, já está imiscuído à intenção certo senso sobre a possibilidade da dúvida, do desconforto, da obscuridade; e então, de súbito, envolvidos pela densidade somos atingidos direta e brutalmente. Tenho predileção por autores capazes de provocar tal efeito e como é de se imaginar, pretendi que a Espiritualidade oferecesse aos leitores este tipo de experiência.  

R. N. — A “parte derradeira” da obra se volta à denúncia: fome, violência policial, desastres ambientais — situações concretas que arrastam a poesia para o terreno social. Nos conte de que modo a poesia de denúncia nos seus versos mantém legitimidade estética sem se tornar mera panfletagem? Onde fica o limite entre urgência e estilo?

C. — Bem, estas situações como violências e injustiças são questões que existem a qualquer época e (quase) todo autor fala sobre sua própria época. Sempre haverá o risco de rotulações, a depender dos temas abordados, dos signos escolhidos. Mas me parece que “urgência” e “criação literária” não possuem uma boa relação: a pressa em terminar precariza a produção do trabalho. Como disse J. C. de Melo Neto, escrever se limita com catar feijão. Ou o inverso disso.

R. N. — Para finalizar, vamos falar de fim. A obra opera com imagens fortes — moscas, píxeis, peixes, redes — metáforas que vinculam tecnologia, natureza, precariedade. Qual dessas metáforas em A Espiritualidade da Sobrevivência (Minimalismos, 2024) lhe parece mais potente para representar o “fim do mundo”? Por quê?

C. — Bem, pensar a respeito das vidas que sobreviveriam ao “fim”, é mais plausível imaginar insetos, como moscas ou baratas.  Gregor metamorfoseou-se em um besouro; Simon avistava a cabeça de um “Lord Of The Flies”; Brás Cubas dedicou sua biografia ao “primeiro verme”. Diria que, para representar esta obra, “A Espiritualidade da Sobrevivência”, a melhor imagem seria uma mosca contra a parede branca. A mosca,  um rico alimento ao louva-deus que, para capturá-la, não precisa de teias: seu exercício é uma fé predatória.     


Carvalrôss

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